Interrogatório - CONTABILISTA

Rui Tavares

DETECTIVE
Há cinco anos, Jorge Lemos foi acusado de assédio sexual pela sua mulher e por mais duas funcionárias da empresa Silph. No entanto, umas semanas depois, as acusações foram todas retiradas e a sua mulher despedida. O que tem a dizer sobre esse incidente? Você não era um simples contabilista, era o director da área de contabilidade. E, quando a sua mulher foi despedida, você foi despromovido. Tinha mais do que suficiente para processar Jorge Lemos. A nossa pergunta é: por que não o fez? Jorge Lemos ameaçou-o? Chantageou-o? Subornou-o?

RUI
Eu não tinha hipóteses de ganhar um processo contra aquele homem! Por muitas provas que nós tivéssemos, nada poderíamos fazer contra os seus advogados, o seu dinheiro e o seu poder! As testemunhas do assédio eram todas funcionários da empresa, com demasiado medo de serem despedidos para sequer falar. E eu, embora fosse, realmente, o director da minha área, só o era há dois anos. Ainda não havia dinheiro suficiente para aguentar um processo legal que provavelmente duraria anos a resolver.

INSPECTORA
A vossa situação económica, desde então, tem vindo a deteriorar… a sua família depende apenas do salário que você recebe, substancialmente menor que antes.

DETECTIVE
Diga a verdade: você não guardava qualquer sentimento de rancor contra o presidente Jorge Lemos?

RUI
Tenho uma família para sustentar, por amor de Deus… E eu não ganhava nada com a morte dele!

INSPECTORA
Isso pode ser verdade, e acredito que você coloca a sua família em primeiro lugar. Mas isso não elimina a possibilidade de você se querer vingar! Pessoas já mataram por muito menos.

DETECTIVE
E por isso queremos saber onde você esteve na noite do crime.

RUI
Passei a noite a trabalhar na empresa, e saí por volta das 21h30. O meu carro estava na oficina nesse dia, apanhei o autocarro à frente da empresa uns minutos depois. Fui logo para casa e não voltei a sair.

INSPECTORA
Quanto tempo demora a viagem toda até sua casa, incluindo o caminho a pé?

RUI
Por volta de 15 minutos.

DETECTIVE
Pois nós falámos com a sua mulher hoje de manhã, e ela informou-nos que o ouviu a chegar a casa por volta da meia-noite e meia. Onde esteve nessas três horas, depois de sair da empresa e antes de ir para casa?

RUI
Não fui eu que matei o Lemos! Quando eu saí da empresa, ele estava vivo! Podem verificar as câmaras de vigilância, verão que eu saí à hora que disse.

INSPECTORA
Mas você poderia facilmente ter voltado à empresa entretanto. Portanto, é bom que nos diga onde esteve entre as 21h30 e as 00h30, senão a situação actual só ficará pior…

RUI
(hesita)
Eu não posso dizer onde estive…

DETECTIVE
Ouça, você está em risco de se tornar o nosso suspeito principal, sem álibi, e com os motivos que tem, a probabilidade de ser condenado pelo homicídio do presidente da Silph é muito grande. Para além disso, temos uma testemunha de uma discussão violenta com a vítima no dia do crime. Não nos esconda nada!

RUI
Vocês não estão a perceber! Eu não posso dizer, porque não sei onde estive! Depois do trabalho, não tinha vontade de voltar para casa. Tive um dia terrível e cansativo, queria estar um bocado sozinho… Então, decidi parar num bar qualquer. E apanhei uma bebedeira monumental…
(pausa)
A partir daí, não me lembro mesmo de nada… nem sei em que bar entrei.

DETECTIVE
Alegar que não se lembra de nada não o ajuda, muito pelo contrário.

RUI
Mas eu estou a dizer-lhe a verdade! A minha discussão com o Lemos era relacionada com o trabalho, não tinha nada a ver com os nossos problemas pessoais; eu não misturo a vida pessoal com a vida profissional.

INSPECTORA:
Mas a pressão era tanta, que as duas se misturam sem você controlar. Vou fazer um resumo da sua situação: a sua relação com a vítima não era das melhores, a sua situação precária actual deve-se ao mesmo, e não tem álibi para a noite do crime… Tudo aponta para si.

RUI
No entanto, não têm nada concreto contra mim e eu não matei Jorge Lemos.


ANÁLISE DA PSICÓLOGA
Rui Tavares parece ser um indivíduo de ideais muito fortes, alguém capaz de se sacrificar em nome daqueles que mais ama. Ele alegou que não tinha nada a ganhar com a morte do presidente Jorge Lemos. No entanto, Rui não aparenta ser uma pessoa calculista, que cometeria um crime para ganho próprio. Fá-lo-ia em nome da sua família.
Embora a alegada história da “bebedeira” seja sinal de desorganização, tudo até agora diz que Rui Tavares é uma pessoa meticulosa, trabalhadora, que segue as regras à risca. Porém, como a sua situação financeira tem gradualmente vindo a piorar, a pressão e a frustração poderiam levá-lo a agir de uma forma radicalmente diferente. Independentemente disso, nada prova que ele esteja a mentir sobre a perda de memória, como ele afirmou confiantemente no fim do interrogatório.