Interrogatório - AMANTE

Catarina Santos


DETECTIVE
Como surgiu a sua relação com Jorge Lemos?

CATARINA
Eu arquivava ficheiros e, por trabalhar no piso dele, via-o imensas vezes. Começámos a falar e a relação desenvolveu-se. Eu já sabia que ele era casado, mas não me importei. Já estava habituada. Ele disse-me que eu receberia algumas prendas. Cama por dinheiro – fácil, não é?

DETECTIVE
Onde tinham habitualmente os vossos encontros?

CATARINA
(num tom provocador)
Tudo o que dê para nos encostarmos serve. Deduzo que já tenham alguma experiência…

INSPECTORA
(ignorando o comentário)
Sabia que Margarida estava grávida de Jorge?

CATARINA
Soube já depois de ele morrer, pelos jornais e pelas revistas.
(a inspectora franze o sobrolho, não acreditando; Catarina cede)
Soube uma semana antes de ele morrer.

INSPECTORA
Tempo mais que suficiente para planear um homicídio, não acha?

CATARINA
(encolhendo os ombros com indiferença)
Não sei, digam-me vocês. Mas também, por que é que eu haveria de matá-lo?

INSPECTORA
Pelo dinheiro do testamento. O Jorge deve ter-lhe falado.
(antecipando-se a um possível comentário impróprio)
E nem sequer pense em chamar um advogado. Com o seu estatuto, o máximo que conseguiria era uma redução de pena por alegação de distúrbios mentais.
(pausa)
Os três aqui sabemos que Jorge Lemos lhe deixou uma quantia avultada de dinheiro. Nós vimos o testamento. Mais ou menos… vinte e cinco por cento?

CATARINA
Como queiram… O Jorge disse-me que eu me andava a portar muito bem – e que por isso me deixara dinheiro. Eu perguntei-lhe quanto: vinte e cinco, tal como disse…

DETECTIVE
Tem álibi? Não apareceu no seu encontro com a vítima...

CATARINA
Estive com um amigo. Alongámo-nos na conversa e esqueci-me do meu encontro com o Jorge e não cheguei a tempo.

DETECTIVE
Sabe que vamos verificar…

CATARINA
(em tom de escárnio)
Podem verificar à vontade. Ele nunca vos dará o prazer de dizer que eu não estive com ele.
(ainda com maior desdém)
Vive em Santa Maria da Feira.

INSPECTORA
Que conveniente…

CATARINA
(trocista)
Estou aqui para agradar.

INSPECTORA
(em tom de desafio)
Andava com a vítima pelo dinheiro fácil, quando ele morresse ou enquanto ainda fosse vivo.

CATARINA
(recostando-se para trás, com um sorriso zombeteiro)
Sou paciente, mas nem tanto.

INSPECTORA
Matou-o quando se cansou de esperar por um prémio maior, quando ficou saturada de ter de ir para a cama com ele só por dinheiro!

CATARINA
(incrédula, indignada, revoltada)
Não! Eu nunca o mataria! E o dinheiro… Isso deixou de importar quando---

INSPECTORA
(levanta-se repentinamente e bate com as mãos na mesa com estrondo)
Você só estava com ele por interesse!

CATARINA
(exasperada)
Não! Eu… eu não estava com ele por interesse!
(pausa; suspira)
Eu amo-o…

INSPECTORA
Ama-o. Mas não hesitava em aceitar as prendinhas dele, pois não?

CATARINA
(já a chorar)
Compreendam… Eu tinha de me sustentar, o meu rendimento mal dá para comer…

DETECTIVE
Discutiu com Jorge Lemos por causa da gravidez?

CATARINA
Sim, mas depois fizemos as pazes… Eu não conseguia estar zangada com ele, tinha sempre de ter o seu carinho… Por isso mesmo nunca o mataria – eu via o meu futuro com ele, matá-lo seria destruir-me a mim própria…

INSPECTORA
Qual quê… Fartou-se e matou-o sem quaisquer escrúpulos. Uma mulher cruel que só se ama a si própria.

CATARINA
(chora sem parar)
Não! Não… Eu amava-o… Eu contentava-me com o salário mísero que ele me dava, somente para estar com ele. Não me via com mais nenhum homem; até quando estávamos juntos já tinha saudades dele, pois sabia que teríamos de nos separar ao fim do dia…

INSPECTORA
(levantando-se e dando indicação a Catarina para fazer o mesmo)
Terminámos o interrogatório. Obrigada pela sua contribuição, foi-nos muito útil. Lembre-se que está proibida de sair do país.

 (Catarina sai, os dois polícias ficam sozinhos)

DETECTIVE
(surpreendido)
Não sabia que já tinham encontrado o testamento dele.

INSPECTORA
E não encontraram – eu inventei tudo.


RELATÓRIO DA PSICÓLOGA

No final do interrogatório, ao qual Patrícia Neto assistira, esta dá o seu parecer.
«Catarina Santos tem um comportamento extremamente suspeito. Inicialmente, dá respostas provocadoras, típicas da sua actividade de amante, procurando irritar os detectives com o seu comportamento insolente. É uma pessoa inteligente que teve a má sorte de nascer numa família sem quaisquer possibilidades. Contudo, mesmo quando exibe o seu lado mais forte, foi notória a sua insegurança - mais uma vez, disfarçada com respostas trocistas. A sua mudança radical de personalidade de um momento para o outro denota um quebrar de todas as barreiras que erige à sua volta. A forma como justifica o seu álibi e como dá tão poucos detalhes sobre o amigo com quem esteve podem indicar que ela tem algo a esconder, um segredo que poderá pô-la numa situação desconfortável.
Não cumpre as regras sociais e tem uma grande dificuldade em aceitar que alguém possa mandar nela ou tê-la "na mão". No tribunal, perderia muito possivelmente o caso; porém, não há quaisquer provas que a possam incriminar do que quer que seja - nem menos do facto de ela ser amante de Jorge Lemos, facto que apenas soubemos a partir de Luísa Gomes e que foi posteriormente confirmado pela própria, ainda que ela possa, mais tarde, negar tal dado.
Ao final, a reacção dela pareceu-me genuína, embora por vezes um pouco exagerada. No entanto, algo nela parece não bater certo – é como se tivesse estado durante todo o interrogatório a desempenhar papéis, primeiro o de amante insolente e depois o de amante que cometeu o erro de se apaixonar…
O facto de ter caído na armadilha do testamento poderá ser reveladora de mau planeamento provocado por segurança excessiva. Apesar de não parecer à primeira vista, Catarina Santos é uma pessoa organizada, mas pode cometer erros - tal como o nosso assassino cometeu.»